quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Anos 1970: o ídolo argentino Doval

Mais uma grande história contada pelo blog Flamengo Alternativo e cuja integra é reproduzida abaixo:

O verão de 1972 em Ipanema se tornaria um marco para a história e a cultura (e a contracultura) da cidade do Rio de Janeiro. Por linhas para lá de tortas, é verdade. Aconteceu que a prefeitura decidiu dividir ao meio a faixa de areia da praia para as escavações necessárias à construção de um emissário submarino, a tubulação de saneamento do bairro da Zona Sul carioca. E para sustentar e firmar essa tubulação foi erguido um monstrengo gigantesco de madeira e ferro apontando bem para dentro do mar: era o chamado “píer” de Ipanema.

A construção do píer provocou duas alterações naturais consideráveis no local: primeiro, a estrutura de madeira sob as águas formava ondas perfeitas para o surfe; e segundo, a areia retirada do local da obra e espalhada para os lados provocou a formação de dunas artificiais. E por trás daquelas dunas – apelidadas “do Barato”, ou “da Gal”, em homenagem à cantora Gal Costa, que vivia por lá – fez-se uma pequena revolução comportamental: em meio a uma fauna de artistas, músicos, jornalistas, poetas, intelectuais, hippies e surfistas, muita música foi composta, grupos de teatro foram criados, modas foram lançadas, gírias se espalharam. Aquela estação seria eternizada como o “Verão do Píer”.

Aquele verão em Ipanema marcaria também o retorno ao Rio de um dos mais famosos frequentadores daquela faixa de areia: o argentino Narciso Horácio Doval, 28 anos completos naquele mês de janeiro, atacante que voltava a integrar o elenco do Flamengo após passagem por empréstimo pelo Huracán de sua terra natal. Daquele período em diante, Doval viveria seus anos mais intensos no futebol carioca, consolidando-se como grande ídolo da massa e verdadeiro personagem da Zona Sul da cidade.


Antes, é claro, muita bola já havia rolado, no Rio e em Buenos Aires. O começo de tudo foi precisamente em Palermo, bairro nobre onde nascera e fora criado, e onde costumava se destacar nas peladas. Chamou a atenção do San Lorenzo, passando às categorias de base do clube e estreando entre os profissionais em 1962, no momento em que o clube de Boedo revelava um ataque demolidor. Alinhavam “El Loco” Doval na ponta-direita, Fernando Areán, Héctor “Bambino” Veira, Victorio Casa e Roberto “Oveja” Telch. Todos com idades entre 17 e 22 anos.

No entanto, o atacante cairia em desgraça num incidente até hoje mal explicado: explodiu contra ele a acusação de ter assediado uma aeromoça durante um voo com o elenco sanlorencista – alguns diriam com a própria seleção. Comenta-se que Doval teria assumido a culpa para livrar a cara de um colega casado do elenco. A punição inicial de um mês de suspensão acabaria passando a dez, depois de Doval se envolver em uma polêmica com o interventor da AFA, enquanto tentava provar sua inocência. Ironicamente, acabaria de fora de toda a campanha do título invicto do clube no Campeonato Metropolitano, quando Los Carasucias acabaram convertidos em Los Matadores.

O jovem Flamengo de Tim vinha oscilando naquele início de Campeonato Carioca, mas pouco depois da entrada de Doval, engatou uma boa sequência de resultados, como um espetacular 3 a 0 diante do Vasco, que o colocaram na briga pelo título contra o Fluminense e o Botafogo. Contra o time de General Severiano, aliás, Doval teria atuação destacada (inclusive marcando o segundo gol) na memorável vitória do Fla por 2 a 1, encerrando um jejum de quatro anos sem derrotar o Alvinegro pelo Estadual. Aquela partida também entrou para a história por um fato curioso: antes do jogo, um grupo de torcedores rubro-negros levara um urubu ao Maracanã, soltando a ave minutos antes da entrada das equipes. O bicho sobrevoou o estádio para o delírio da torcida, encerrando ali a conotação pejorativa do termo pelo qual os torcedores do Flamengo, em sua maioria negros e pobres, costumavam ser chamados pelos rivais.

Aquele time rubro-negro, entretanto, não conquistaria o Carioca, parando diante dos tricolores em um Fla-Flu épico pela penúltima rodada. O Fluminense venceu por 3 a 2, e o caneco tomou o rumo das Laranjeiras. Embora já tivesse conquistado a torcida rubro-negra com inúmeras provas de sua categoria e raça, e contasse com um entusiasta de seu futebol no comando da equipe, Doval veria sua presença entre os titulares tornar-se mais intermitente até o fim daquele ano, já que Tim em vários momentos precisava recorrer aos demais estrangeiros do elenco. E diante da má campanha na Taça Guanabara (na época, um torneio à parte do Estadual) e no Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o velho treinador deixaria o clube ao fim daquele ano.

Se o entendimento entre Doval e Tim era excelente desde os tempos de Boedo, com o novo treinador rubro-negro a história seria completamente diferente: Dorival Knippel, o Yustrich. Homem com fama de truculento, intransigente, centralizador, disciplinador, passional e até agressivo, era para os cartolas do Fla o nome ideal para colocar “na linha” um elenco jovem e tido como um tanto indolente. Com seu esquema apelidado de “cavadinha”, que consistia nos lançamentos em profundidade feitos pelos pontas, além de incessante marcação por pressão na saída de bola do adversário, o time começou o ano de 1970 atropelando: na conquista do Torneio Internacional de Verão, um quadrangular disputado em fevereiro no Rio de Janeiro, o Fla goleou a seleção da Romênia (4 a 1), o Independiente argentino (6 a 1) e bateu o Vasco por 2 a 0 para ficar com o título. Doval balançou as redes três vezes nas duas primeiras partidas.

Mas logo no início da Taça Guanabara – mais uma vez disputada como torneio à parte, e durante todo o primeiro semestre – os atritos entre o técnico e o atacante desatariam. Doval reclamava que o esquema o transformava num lateral, resumindo-se a cumprir funções táticas de maneira burocrática, quando o que queria na verdade era jogar solto, para desenvolver melhor seu futebol intuitivo. E, para piorar, era frequentemente substituído por Yustrich durante os jogos, dando lugar a jogadores bem menos brilhantes, mas mais disciplinados. Assim, o Gringo oscilou durante a longa disputa do torneio, entrando e saindo do time, mas afinal ajudando na conquista do título, após empate em 1 a 1 com o Fluminense em 31 de maio daquele ano.

No segundo semestre, após a Copa do México, viria o Estadual. Foi aí que a tensão chegou a seu primeiro auge: “Yustrich está matando meu futebol”, vociferou o argentino em entrevista à Placar. E a perseguição do treinador, segundo ele, extrapolava o campo: “Yustrich se mete na vida de todo mundo. Eu sei que ele não gosta do meu cabelo, das minhas roupas coloridas e do meu carro cor de laranja. E ninguém pode namorar”, escancarou. Sacado do time, Doval viu o Flamengo estagnar no Carioca após um bom começo e terminar apenas na quinta colocação. Um breve momento de trégua com Yustrich veio durante o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, quando, diferentemente dos anos anteriores, o Rubro-Negro cumpriu excelente campanha, brigando até o fim pela classificação, mas acabando de fora do quadrangular final após uma derrota para o Corinthians no Pacaembu na última partida, perdendo a vaga no saldo de gols.

No fim de março de 1971, como já se recusasse deliberadamente a obedecer às ordens do treinador – que o tachara de “doente mental” pelo jeito considerado indisciplinado –, Doval pediu para ser negociado e acabou emprestado ao Huracán, que montava um bom time, até o fim daquele ano.

Com o fim do empréstimo, Doval retorna ao Flamengo e assina novo contrato em 17 de janeiro de 1972, realizando um sonho: com o dinheiro das luvas, compra um apartamento na rua Visconde de Pirajá, próximo à praça General Osório, em Ipanema. Agora oficialmente morador do bairro, estava completamente integrado à vizinhança. Esbanjando carisma e irreverência, era o argentino mais carioca de todos. Saía dos treinos na Gávea direto para a praia, onde jogava vôlei (e uma nova modalidade recém-criada, o futevôlei), bebia seu chope no tradicional bar Veloso, corria com os amigos Marcos e Paulo Sérgio Valle – os irmãos compositores de “Samba de Verão”, sucesso internacional, e outras canções clássicas da música popular brasileira – e aproveitava para dedicar-se a sua outra grande paixão: as mulheres.


Feliz por estar de volta a tudo o que amava, Doval só poderia retribuir em campo. Começaria naquele ano a fase em que se converteria definitivamente em ídolo, amado pela torcida do Flamengo e respeitado pelas adversárias, admirado pelos companheiros e temido pelos zagueiros. Era um atacante de muita qualidade técnica, mas era pela raça, garra e valentia que se destacava. Poderia jogar aberto pela ponta-direita ou dentro da área, onde preferia, como centroavante ou ponta-de-lança. Nunca se omitia. Não raro, deixava o campo com a camisa ensanguentada. Apanhava dos beques, mas batia de volta. Prendia a bola na frente, segurava a defesa. Catimbava e cavava faltas, mostrando que aprendera bem seu ofício em Boedo. E quando balançava as redes, corria em direção à geral do Maracanã, para receber o carinho da massa.

O bom elenco reunido pelo Flamengo naquele ano também ajudou na recuperação de seu futebol. Agora treinado por Zagallo, o clube da Gávea havia se reforçado com o meia-atacante Paulo César Caju (contratado do Botafogo), o goleiro Renato (ex-Atlético-MG) e o volante Zé Mário (vindo do Bonsucesso). Além disso, a classe e a segurança de Reyes na zaga, a afirmação de jogadores como Liminha, Arílson e Rodrigues Neto, a recuperação física de Zanata e a boa fase de Caio eram notícias animadoras.

Assim, o time que já havia levantado outro Torneio Internacional de Verão, contou agora com atuações espetaculares do “Diabo Loiro” para conquistar também o Torneio do Povo, derrotando o Corinthians no Pacaembu, o Bahia na Fonte Nova, o Atlético-MG no Maracanã e empatando com o Internacional, também no Rio.

Em seguida viriam os títulos da Taça Guanabara – disputada pela primeira vez como o turno de abertura do Estadual e vencida com goleada de 5 a 2 sobre o Fluminense – e, já em setembro, do Campeonato Carioca, novamente com vitória sobre o Tricolor, desta vez por 2 a 1. Coube a Doval a abertura do placar, subindo mais que toda a defesa do Flu para marcar de cabeça. Aquele seria o 16º gol do argentino na competição, o que lhe daria a inédita artilharia do torneio.

Em 1973, é promovido de vez ao elenco profissional do Flamengo um garoto que Zagallo havia deixado quase todo o ano anterior na equipe de juvenis para completar sua formação. Um jovem chamado Zico, que será por vezes escalado como meia-armador, mas na maior parte do tempo passará a temporada como reserva imediato de Doval, tanto na ponta-direita quanto na ponta-de-lança. Enquanto isso, o Gringo mantinha a grande fase, agora tendo Dario, o Dadá Maravilha, como parceiro pelo centro do ataque numa tabelinha que virou música. No entanto, uma torção em um dos joelhos o tirou das partidas finais do Campeonato Carioca, conquistado pelo Fluminense. No fim do ano, porém, teria a honra de participar do jogo de despedida de Garrincha – com quem convivera brevemente quando o ponta defendeu o Flamengo, em fim de carreira em 1969. Naquele 19 de dezembro, Doval fez parte do combinado estrangeiro que enfrentou uma Seleção Brasileira reforçada pelo velho Mané.

Uma verdadeira novela para a renovação de seu contrato com o Flamengo, firmada somente em 6 de abril, deixou Doval inativo pelos três primeiros meses do ano de 1974. Essa dificuldade e uma distensão na coxa direita sofrida no jogo contra o Grêmio no Maracanã pelo Campeonato Brasileiro impediram uma participação maior do argentino na boa campanha rubro-negra naquele torneio. Nas dez partidas em que esteve em campo, no entanto, teve boas atuações fazendo dupla de frente com Zico e marcou cinco gols. Mas aquele rejuvenescido Flamengo dirigido por Joubert prometia. E no Campeonato Carioca, no segundo semestre, já com Doval totalmente recuperado, a equipe embalou rumo ao título. O “Diabo Loiro” ficou de fora de apenas quatro das 27 partidas do Flamengo (coincidentemente, uma delas foi justamente a decisão contra o Vasco) e marcou dez gols, tornando-se o vice-artilheiro da equipe, atrás apenas de Zico, a grande revelação do futebol brasileiro naquele ano.

Outro jogador que surgiu como sensação em 1974 acabaria indo parar na Gávea em abril do ano seguinte: o centroavante Luisinho Lemos, do America, artilheiro do Carioca com 20 gols (um a mais que Zico) e que já havia feito outros 15 no Brasileiro (superado em apenas um pelo vascaíno Roberto Dinamite). Em tese, o trio parecia irresistível. Na prática, no entanto, não foi bem assim. Doval, contra sua vontade, acabaria deslocado para a ponta-direita para abrir espaço para o recém-contratado no comando do ataque.

Resultado: insatisfeito em jogar numa posição que não favorecia seu estilo de jogo, de brigar entre os beques, o Gringo não rendia o mesmo da temporada anterior, exceto em ocasiões esporádicas quando retornava ao centro do ataque. E pior: ansioso para mostrar a que tinha vindo, Luisinho se afobava nas finalizações. Só Zico manteve o nível, marcando espantosos 30 gols no Carioca, o novo recorde do torneio na Era Maracanã. Mas o Fla tropeçou em momentos decisivos, não venceu nenhum dos turnos e ficou fora das finais, irremediavelmente. Sem conseguir dar padrão ao trio, Joubert acabaria demitido no início do Brasileiro.

O novo técnico rubro-negro, o gaúcho Carlos Froner, não melhoraria a situação de Doval no time. Mantido na ponta, o atacante acabou lesionando o pé num jogo do Brasileiro e teve recuperação demorada, voltando aos poucos, apenas nos últimos jogos. E ao fim daquele ano viria a negociação que sacudiu o futebol carioca. Pelo menos desde maio de 1975 já se especulava sobre o interesse do Fluminense em Doval. Em outubro, já se falava na possibilidade de troca por empréstimo ou em definitivo de Doval pelo ponta-esquerda tricolor Zé Roberto.

Aos 31, quase 32 anos, o Gringo era considerado velho pelos dirigentes rubro-negros – mas seguia como ídolo maior da torcida, no mínimo em igualdade com o ascendente e prata da casa Zico. E em 19 de dezembro, após jantar entre os presidentes Hélio Maurício, do Fla, e Francisco Horta, do Flu, a troca três por três era acertada: Doval mais o goleiro Renato e o lateral-esquerdo Rodrigues Neto iriam para as Laranjeiras, enquanto o goleiro Roberto, o lateral-direito Toninho e o já sondado Zé Roberto seguiriam para a Gávea.

A princípio, naquele momento, ambas as torcidas reprovaram as trocas. Os tricolores reclamavam da idade avançada dos jogadores vindos do Rubro-Negro, especialmente em comparação com os que saíam. Já os flamenguistas protestavam afirmando que haviam cedido seu maior ídolo e dois jogadores com passagem pela Seleção a troco de outros que, embora tratados como promessas, nunca chegaram a se firmar nas Laranjeiras – a exceção era Toninho. O tempo mostraria que a torcida do Flamengo era a que tinha razão em seu protesto.

Doval jogaria por três anos no Fluminense, retornando ao San Lorenzo – então passando por uma de suas piores fases – em 1979, e em seguida encerraria sua carreira atuando no incipiente futebol dos Estados Unidos. Depois de pendurar as chuteiras, voltou a viver em seu país, mas sempre manteve contato com o Rio de Janeiro e com o Flamengo, inclusive indicando jogadores argentinos e observando adversários. Em 9 de outubro de 1991, o time rubro-negro foi a Buenos Aires enfrentar o Estudiantes pela extinta Supercopa, em partida realizada no estádio do Huracán. Antes do jogo, vencido pelo Fla por 2 a 0, Doval visitou a delegação, abraçou velhos conhecidos, reafirmou sua paixão pelo clube e contou histórias. Três dias depois, conquistava em campo, defendendo o Flamengo, um torneio de futebol de masters realizado na capital argentina. Saindo da comemoração do título numa boate portenha, sofreu um ataque cardíaco e morreu. Tinha 47 anos.

Seu nome, entretanto, já estava eternizado na história do futebol e da cidade do Rio de Janeiro. É até hoje, por exemplo, o maior goleador estrangeiro do Flamengo, com 94 gols. O “argentino mais carioca”, que chegou a se naturalizar brasileiro em 1976, apesar de sempre arranhar um portunhol nas entrevistas e no dia a dia, virou lenda do Maracanã, ídolo da galera rubro-negra e personagem de Ipanema. Está vivo na memória dos amigos, em suas histórias impagáveis, e na dos torcedores, pela bola cheia de raça e técnica.

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