quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O Nascimento da Mística da Camisa Rubro-Negra


Que os ventos do nosso passado, soprados de 1927 empurrem nosso scratch neste dia 27 para a história! No Mineirão, Flamengo e Cruzeiro decidindo a Copa do Brasil... 

Espetacular, mais uma vez, texto de Emmanuel do Vale no excepcional blog Flamengo Alternativo. Texto entitulado "O épico título carioca de 1927 e o surgimento da mística da camisa rubro-negra".

Eis a integra:

Pai fundador da crônica esportiva brasileira moderna e grande contador de histórias do Flamengo, Mario Filho gostava de explicar o nascimento do mito da camisa rubro-negra, a que joga sozinha, utilizando-se da trajetória do time rumo ao título carioca de 1927. Na magistral pena do jornalista, aquela conquista ganhava ares de fábula, de épico. Há de se dizer, porém, que ao contrário do que possa parecer, ou seja, que o feito teria sido supostamente engrandecido pela prosa do cronista, não há na verdade exagero nenhum: a história foi exatamente daquele jeito – um épico, uma fábula.

A equipe que sequer disputaria a competição naquele ano por ver imposta contra si uma suspensão injusta. Que viu seu elenco se dispersar, tomar outros rumos, afastar-se da bola, e depois retornar aos poucos, em busca da forma perdida. Que, quando enfim foi a ela permitido competir, andou desacreditada desde o início, inferiorizada, sofrendo goleada que quase arrasou seu terreno. Que perdeu seus principais nomes em momentos cruciais da campanha, mas nem assim esmoreceu – apenas para vê-los retornar na hora mais crucial de todas. Essa equipe, por fim, foi campeã na raça, no coração, chegando junto, com os jogadores se multiplicando em campo. Um título de lutadores.

No começo, porém, os sinais eram bem diferentes. Nos principais prognósticos acerca do torneio daquele ano, o Vasco despontava como o maior favorito ao título. No ano anterior, quando mandou muitos de seus jogos no campo rubro-negro da Rua Paissandu, a taça lhe escapara por pouco. Agora, com o aporte financeiro da rica burguesia lusitana que integrava sua torcida, construíra e inaugurara um portentoso estádio, o de São Januário, o maior do Brasil. Outro favorito era o America, que também abrira os cofres, mas para montar um time com reforços escolhidos a dedo. “Um verdadeiro ‘scratch’ (seleção)”, comentava a imprensa da época.

Campeão de 1926, o São Cristóvão tinha a missão de provar que seu título inédito não havia sido obra do acaso. Ainda estavam lá os mesmos jogadores e o treinador Luiz Vinhaes, com seus rigorosos métodos de treinamento e preparação física. O Fluminense de Preguinho e Fortes, e o Botafogo de Nilo corriam por fora na briga, mas com talento suficiente para não serem ignorados como candidatos. Mas, e o Flamengo? “O Flamengo não tem time”, diziam.

De fato, o Flamengo esteve perto de não ter mesmo time, no sentido literal. Até poucas semanas antes de a bola rolar, sua participação no certame esteve ameaçada. O motivo remete ainda ao fim do ano anterior e a uma briga nascida no futebol paulista. O Paulistano, uma das forças bandeirantes, havia sido expulso da Associação Paulista de Sports Athleticos por denunciar o chamado “amadorismo marrom”, prática que acobertava o pagamento de prêmios e salários a atletas, o que era rigorosamente proibido no regime amador puro, e que cada vez mais avançava tanto em São Paulo quanto no Rio.

Ocorre que Flamengo e Paulistano mantinham muito boas relações vindas de longa data. Em 1925, quando realizara sua célebre excursão à Europa, que chamou a atenção internacional para o futebol brasileiro, o time de Arthur Friedenreich contou com três ex-jogadores rubro-negros – o goleiro Julio Kuntz, o médio Seabra e o atacante Junqueira. Agora, fins de 1926, o clube paulista se via numa situação complicada: havia acertado amistosos contra equipes argentinas, mas, com a punição, não tinha onde enfrenta-los em sua cidade. E pediu ao Flamengo que lhe cedesse o campo da Rua Paissandu.

Estádio da Rua Paissandu lotado

A Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), entidade que regia o futebol carioca, proibiu a cessão e ameaçou punir o Flamengo, referendando a medida de sua equivalente paulista, caso os jogos se realizassem. Mas, em nome da amizade com o Paulistano, o Rubro-Negro manteve sua palavra e não voltou atrás. O caso chegou à Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que decidiu, na véspera do Natal de 1926, pela suspensão do Flamengo por um ano.

A decisão foi fortemente criticada na imprensa e tachada de exagerada, de ter motivações pessoais, além de expressar uma profunda incoerência das entidades, agora rigorosas com as leis, mas que haviam burlado, cada qual em seu caso, suas próprias legislações. A AMEA havia escalado o goleiro Batalha, não regularizado, para um jogo da seleção carioca contra a mineira. Já a CBD havia convocado jogadores do próprio Paulistano para o Campeonato Sul-Americano mesmo depois de o clube ter sido expulso pela Associação paulista. Cheirava a hipocrisia, moralismo de fachada.

A perspectiva de um ano inteiro sem campeonato para disputar significava o desmantelamento do elenco rubro-negro. Muitos jogadores simplesmente deixaram a bola de lado e, amadores que eram, voltaram a se dedicar a seus empregos como funcionários do comércio, bancários, professores, médicos, advogados ou mesmo estudantes. Numa conversa informal com amigos mencionada pelo jornal O Imparcial, o centroavante Nonô, ídolo e artilheiro dos campeonatos de 1923 e 1925, declarava em fevereiro daquele ano que em hipótese alguma voltaria a jogar futebol.

Houve também quem preferisse seguir a carreira de jogador em outro clube, como o atacante Aché, que após ser convidado para defender o Botafogo em alguns amistosos, decidiu se transferir definitivamente para o Alvinegro em março. Ou o zagueiro Pennaforte, o “menino de ouro”, titular indiscutível da defesa, que saiu por motivo controverso, simbolizando bem as transformações pelas quais o regime amador passava na época. De casamento marcado, o jogador pediu ao clube que o ajudasse comprando a mobília de quarto para sua casa nova. Sem dinheiro, o Flamengo recusou. E o zagueiro acabou aceitando uma transferência para o America, que prometera atender seu pedido.

Houve ainda inúmeros casos de jogadores rubro-negros que, na inatividade, foram sondados por outros clubes. O goleiro Amado, que ano após ano vinha se colocando como um dos melhores – senão o melhor – da posição no futebol carioca, foi especulado no Vasco em janeiro e no America no mês seguinte. E o zagueiro Hélcio, outro destaque da equipe, esteve perto de se juntar a Pennaforte na defesa rubra. Felizmente, nenhum deles engrossou a lista de baixas da Rua Paissandu.

O goleiro Amado Benigno

No entanto, mesmo com a punição já decretada e aplicada, havia no íntimo de todos os demais dirigentes, jornalistas e torcedores cariocas a convicção de que a suspensão poderia ser revertida. Quando nada porque a ausência do Flamengo era um baque para o campeonato, em vários sentidos. Inclusive no financeiro – mesmo num regime em tese amador. Em nota publicada já no dia 5 de janeiro de 1927, o jornal O Imparcial fazia as contas “a bico de pena” e comentava que, ao deixar de jogar o torneio, o clube perdia cerca de 100 contos de réis. Mais: os demais clubes também tinham prejuízo, calculado em torno de 500 contos de réis, ambos os valores representando verdadeiras fortunas para a época.

Assim, um clima de apreensão tomou conta do meio futebolístico da cidade naqueles primeiros meses de 1927. Por volta de meados de março, como quem não queria nada, o Flamengo chamou seu elenco – ou o que havia sobrado dele – para treinamentos semanais. Aos poucos, os jogadores foram se apresentando: Amado, Benevenuto, Flávio, Fragoso, Moderato. E foram trazendo outros, como o jovem médio Alemão, vindo de Niterói como possível reforço para o segundo quadro (espécie de time reserva ou de juniores). Quando, no fim daquele mês, a movimentação para tentar fazer com que a CBD suspendesse a punição se intensificou, dois ex-jogadores do Bangu chegaram para reposição de elenco: o ponta-direita Chrystolino e o curinga Américo Pastor, que já havia jogado até de goleiro, mas no Fla se fixaria na meia-esquerda.

No dia 31 de março, os demais clubes da primeira divisão da AMEA e a Associação dos Cronistas Desportivos remeteram juntos um apelo à entidade para que a pena imposta ao Flamengo fosse cancelada. No dia 5 de abril, o pedido era encaminhado ao conselho deliberativo da entidade. E no dia 22, após reunião muito concorrida, os dirigentes da CBD decidiam por unanimidade pelo cancelamento da punição, aproveitando ainda para elogiar a serenidade e a disciplina com as quais o clube enfrentara todo o desenrolar do processo.

Veio então a disputa do Torneio Início, realizado nas Laranjeiras em 24 de abril, no qual o Flamengo, depois de ter derrotado o Villa Isabel, seria eliminado em seu segundo jogo, perdendo no número de escanteios para o São Cristóvão após empate sem gols no tempo normal. E em 1º de maio começaria enfim o campeonato. Na análise prévia do torneio, o jornal O Imparcial destacava os pontos fortes e fracos de todos quase os concorrentes, colocava o Vasco como o postulante mais forte ao título e fazia ressalvas em relação ao Flamengo: “O rubro-negro carece de linha média e os próprios forwards [atacantes], com excepção de dois elementos, não inspiram grande confiança”.

Villa Isabel e Andarahy, os dois primeiros adversários, não representavam grandes desafios, mas a falta de coesão da remendada equipe rubro-negra fez as coisas se complicarem um pouco. Na primeira partida, o time abriu 2 a 0 diante do Villa Isabel, sofreu o empate e só a partir da metade do segundo tempo engrenou até conquistar uma tranquila vitória por 5 a 2 (enquanto isso, o Vasco demonstrava sua força surrando o pobre Sport Club Brasil por 11 a 0). Na segunda rodada, contra o Andarahy no estádio do adversário, o Fla contou com uma tarde inspirada do centroavante Fragoso, autor dos três gols na vitória por 3 a 2 – mas no intervalo, o placar marcava empate em 1 a 1.


Contra o São Cristóvão, equipe mais qualificada e detentora do título, o Flamengo sofreu mais. Mesmo jogando em casa, foi pressionado pelos cadetes em quase todo o primeiro tempo. Hélcio, enfim estreando no campeonato após longa inatividade, comandava a defesa. Na volta do intervalo, logo aos três minutos, Chrystolino bateu forte, Balthazar defendeu e, após confusão na área, Fragoso apanhou o rebote e chutou para abrir o placar. Mais tarde, em bola alçada para a área rubro-negra, Arthur empatou de cabeça. Mas logo no minuto seguinte, quando o time alvo pressionava pela virada, a defesa do Fla espanou uma bola que parou no meio-campo. Agenor recolheu e partiu em contra-ataque fulminante até a área, batendo cruzado para vencer o arqueiro adversário e garantir a terceira vitória.

Para uma equipe de tão poucos destaques individuais como aquela do Flamengo, perder um deles para um jogo importante como um clássico era um grande baque. Perder um goleiro como Amado, pela posição e pelo jogador que era – considerado o melhor arqueiro do futebol carioca – só aumentava a preocupação. Havia ainda outro agravante no caso do Botafogo, adversário da quarta rodada na Rua Paissandu: os alvinegros estavam com o Flamengo atravessado na garganta desde agosto do ano anterior, quando os rubro-negros haviam aplicado uma humilhante goleada de 8 a 1, a maior já registrada no clássico até então.

Foi uma tarde particularmente desastrosa para o garoto Egberto, goleiro do segundo quadro do Flamengo que substituía Amado. O Botafogo abriu a contagem com Ariza, aos oito minutos, e disparou a marcar. Quando Moderato descontou para o Fla pela primeira vez, aos 28, o Botafogo já vencia por 6 a 0. Ao fim, venceriam por 9 a 2, igualando a diferença de gols da goleada rubro-negra do ano anterior. O placar foi recebido com assombro. E ao Flamengo, restou juntar os cacos mais uma vez.

Uma semana depois, haveria a longa e cansativa viagem de trem para enfrentar o Bangu, adversário sempre difícil na Rua Ferrer. O ex-banguense Chrystolino aproveitou centro de Moderato e abriu o placar para os rubro-negros logo aos três minutos, mas Ladislau da Guia empatou de pênalti aos 11 e virou aos 15, levando os donos da casa em vantagem para o intervalo. Na etapa final, o Flamengo foi outro: Chagas tornou a empatar, Fragoso marcou duas vezes e Chrystolino voltou a balançar redes para fechar a contagem em 5 a 2. Foi a injeção de ânimo que o time precisava para as duas próximas batalhas contra o Fluminense nas Laranjeiras e o Vasco na Rua Paissandu.

Amado no jogo Flamengo x São Cristóvão na Rua Paissandu

O Fluminense era o líder isolado do certame ao receber o Flamengo naquele 12 de junho nas Laranjeiras. Acabara de vencer a quinta partida em cinco rodadas ao bater o mesmo Botafogo que havia goleado os rubro-negros. E tinha no gol o arqueiro Batalha, que no ano passado havia deixado o Flamengo brigado em plena disputa do campeonato para atravessar a Rua Guanabara (atual Pinheiro Machado) e se juntar aos tricolores ao final do torneio. Já pelo lado do Fla, mais um jogador retornava à equipe: o médio Seabra, jogador experiente, de Seleção Brasileira, ainda que um pouco fora de forma devido à inatividade.

Mas seria outro jogador experiente, de Seleção, o grande artífice do triunfo rubro-negro: o ponta-esquerda gaúcho Moderato, estudante de Engenharia, craque e “garçom” daquele time. Num contragolpe, aos 27 minutos do primeiro tempo, ele passa pelo médio tricolor Nascimento, arranca, espera Chagas, o centroavante, entrar na área e cruza com perfeição geométrica para o atacante marcar o único gol do jogo. O outro destaque foi a defesa: Amado, elegante, valente e preciso nas intervenções. Hélcio, uma barreira intransponível na zaga. Hermínio, perfeito no jogo aéreo, afirmando-se a cada partida.

A vitória colocou o Flamengo de novo na briga: Fla, Flu, Vasco e Botafogo estavam agora empatados na liderança do torneio, e a partida contra os cruzmaltinos dali a uma semana na Rua Paissandu ganharia ainda mais importância. Mas, para variar, haveria um desfalque. Chagas, o autor do gol da vitória contra os tricolores, lesionara-se e estaria de fora do outro clássico. Restava ao Flamengo apostar suas fichas em seu substituto, um meia-direita do segundo quadro chamado Vadinho.

O jogo contra o Vasco foi uma das atuações históricas do Flamengo nos tempos do amadorismo. Mesmo sendo a partida disputada no estádio rubro-negro da Rua Paissandu, os cruzmaltinos eram apontados como francos favoritos: “Analyzando-se jogador por jogador, conjunto por conjunto, o quadro do Vasco da Gama, com excepção de dois elementos (Amado e Moderato, que aliás foram a differença do team), era todo superior à equipe rubro-negra”, escreveu O Paiz. Mas teriam pela frente uma “estupenda, magistral e assombrosa actuação” do arqueiro do Flamengo.

Desde o início o Vasco pressionou a retaguarda rubro-negra, mas saiu atrás no marcador aos 22 minutos, quando Moderato desceu pela ponta esquerda, passou pelo médio Nesi e cruzou. A defesa rebateu, mas Vadinho, o substituto de Chagas, testou para abrir a contagem. E tome pressão vascaína, afastada por Amado, Hermínio, Hélcio e quem mais aparecesse. Mas aos 37, a bola outra vez cai aos pés de Moderato, que repete a jogada do primeiro gol: passa por Nesi, vai à linha de fundo e centra. Vadinho, outra vez, aparece para cabecear longe do alcance do goleiro Nelson, ampliando a contagem em favor do Fla.

Mesmo em desvantagem, o Vasco procurava não se desesperar, tentando encontrar a melhor maneira de furar a barreira rubro-negra. Mas deixava sua defesa exposta. Aos seis minutos, foi salvo pela arbitragem, que anulou inexplicavelmente o que seria o terceiro gol do Flamengo quando, mais uma vez, Moderato foi à linha de fundo e cruzou para Fragoso, que vinha de trás, tocar para as redes. O juiz Homero Mesquita, do Andarahy, invalidou o lance sem motivo aparente.

E seria em novo contra-ataque, após intenso bombardeio da linha cruzmaltina, que o Flamengo mataria de vez a partida. Moderato, do meio-campo, encontra Vadinho com um lançamento primoroso. O atacante avança e bate na saída de Nelson, que ainda toca na bola, mas não consegue evitar o gol. O terceiro do substituto. O terceiro na vitória de um Flamengo brioso e letal, que deixava o rival para trás e se firmava na ponta da tabela, ao lado do Botafogo.

Vadinho, herói do Flamengo x Vasco

A partida com o Vasco foi de tamanha simbologia que foi a ela que Mário Filho se referiu para contar a saga do título de 1927 em seu livro Histórias do Flamengo. “Tinha havido um jogo com o Vasco, o Vasco sem sair da porta do gol do Flamengo, o Amado pegando tudo. O Flamengo deu quatro ataques, três a zero porque o gol mais bonito foi anulado. O Vasco não se conformou: time era o do Vasco, o Flamengo não tinha time. E o Flamengo, então, concordou que não tinha time, embora tivesse Amado no gol, Hélcio de beque e Fragoso e Vadinho lá na frente para fazer os gols. O Flamengo, era o que dizia grave e enfaticamente o pessoal do [Café] Rio Branco [tradicional reduto rubro-negro no centro da cidade], não precisava de time para conquistar o campeonato. Bastava-lhe a camisa. Onze paus de vassoura com camisa do Flamengo seriam irresistíveis”, escreveu o cronista.

“Vale lembrar que o Vasco tinha uma equipe poderosa, muito melhor do que a nossa”, confirmou o ponteiro rubro-negro Moderato, muitos anos mais tarde, em entrevista de 1982 ao jornal O Globo. “Naquele dia, o Vasco nos bombardeava. E Amado Benigno defendia tudo. Nosso time conseguia se superar. Hermínio, Hélcio, Benevenuto e Flávio Costa caíam em campo de tanto esforço. Eu mesmo, naquele dia, estava com a saúde comprometida. Mas era preciso ganhar”.


Moderato jogara toda a partida sentindo fortes dores na barriga. Ao fim do jogo, foi levado a um pronto socorro, onde seria operado em caráter de emergência de uma apendicite supurada, que poderia tê-lo levado à morte. A notícia correu a cidade, e o feito virou mais um exemplo da valentia daqueles jogadores. O ponta, no entanto, ficaria fora de ação por três meses. Era mais um sério obstáculo a ser enfrentado pelo time rubro-negro.

Em princípio, o Flamengo superou bem a ausência de seu principal atacante diante do fraco adversário da rodada seguinte, o Sport Club Brasil. Nem mesmo quando o clube da Praia Vermelha empatou o jogo na metade do primeiro tempo imaginava-se que os rubro-negros deixariam de vencer. E o triunfo veio com goleada de 6 a 1, quatro gols de Fragoso e outros dois de Chagas, de volta à equipe. O resultado, aliado ao empate entre Vasco e Botafogo, levou o Flamengo pela primeira vez à liderança isolada do campeonato, algo absolutamente impensável ao início da temporada.

Na partida seguinte, no entanto, faltou ímpeto ao ataque rubro-negro diante do America em Campos Salles quando, depois de sair perdendo por 1 a 0 na etapa inicial e conseguir empatar no começo do segundo tempo, não aproveitou o momento favorável, sofrendo ainda mais dois gols rubros, perdendo por 3 a 1. Menos mal que a derrota do Botafogo para o São Cristóvão e o empate entre Fluminense e Vasco ajudaram a manter o Flamengo na liderança ao fim do primeiro turno.

Na abertura do returno, no dia 10 de julho, o Fla voltaria a ter dificuldades na visita ao Villa Isabel: embora dominado, saiu na frente do placar por duas vezes, mas cedeu o empate. Somente nos três minutos finais é que marcaria mais dois gols, vencendo por 4 a 2. Mas a atuação incisiva, mesmo com os desfalques, na vitória por 3 a 1 diante do Andarahy na Rua Paissandu uma semana depois representou um alento quanto à forma da equipe: “O vanguardeiro não está disposto a ceder a ponta”, escreveu O Imparcial.

Após uma suada vitória por 1 a 0 diante do modesto Sport Club Brasil, na Praia Vermelha, no entanto, a liderança rubro-negra seria ameaçada na visita ao São Cristóvão em Figueira de Melo. Além de enfrentar a pressão do time da casa num estádio de atmosfera comumente hostil e o vento forte que soprava contra seu campo de defesa em todo o primeiro tempo, o Flamengo ainda seria prejudicado com a anulação de um gol legal de Fragoso, após cruzamento da direita de Chrystolino. O árbitro Lippe Peixoto marcou toque de mão inexistente do ponteiro, antes de ele cruzar para a cabeçada do centroavante.

Aos 30 minutos, Teófilo abriu o placar para o São Cristóvão. Prejudicado também pela má forma física de alguns veteranos que retornavam após longa inatividade, como os médios Seabra e Japonês (este, improvisado na ponta-esquerda), o Flamengo sairia para o intervalo em desvantagem. Na volta, porém, empataria com Chrystolino, que recebeu de Vadinho e fuzilou o goleiro Baltazar. O empate manteve os rubro-negros na liderança graças ao tropeço do Fluminense, que também ficou no 1 a 1 contra o Bangu nas Laranjeiras. Mas o gol mal anulado de Fragoso na primeira etapa impediu que a vantagem do Flamengo na ponta aumentasse.

Intervenção decisiva de Amado no empate em 1 a 1 contra o São Cristóvão
no alçapão de Figueira de Melo - Foto da revista “O Malho”

Ainda que alguns veteranos retornassem aos poucos, o elenco rubro-negro era exigido ao máximo e sofria seguidas baixas. Na zaga, Roseira já vinha ocupando o lugar ora de Hermínio, ora de Hélcio nos últimos jogos. Contra o Botafogo em General Severiano, na rodada seguinte, ele é que teria de deixar o campo, substituído por um improvisado Ludovico, médio de origem. Além dele, Flávio Costa precisou entrar no segundo tempo no lugar do lesionado Rubens, que vinha fazendo boa partida na linha média.


O Flamengo abriu o marcador com Newton logo no início, sofreu a virada alvinegra para 3 a 1, mas foi buscar a igualdade na metade do segundo tempo, com dois gols de Vadinho. Porém, as falhas defensivas originadas das improvisações acabariam custando o ponto: três minutos depois do empate, Ariza aproveitou bobeada de Ludovico, Amado defendeu o chute, mas Nilo aproveitou o rebote para marcar o quarto. E já nos minutos finais, em contra-ataque, o mesmo Nilo marcaria o quinto, fechando o placar. Com a vitória do Fluminense por 4 a 3 diante do Brasil na Urca, o Fla acabaria ultrapassado pelos tricolores na ponta da tabela.

No dia 14 de agosto, o Flamengo bate o Bangu por 2 a 0 na Rua Paissandu, com gols de Fragoso e Newton ainda no primeiro tempo e retorna à ponta, junto com o Fluminense, após o empate deste com o Botafogo por 1 a 1 em General Severiano. E assim, igualados, eles chegariam ao confronto direto, o Fla-Flu do returno, em 21 de agosto no campo rubro-negro.

E do embate igualados também sairiam: empate em 1 a 1, com o Fla abrindo o placar com Agenor e o Flu empatando um minuto depois com Lagarto. A novidade é que teriam agora também a companhia do Vasco na ponta, após a vitória cruzmaltina sobre o Bangu por 4 a 0. Um ponto atrás vinha o America, também entrando de vez na briga, a duas rodadas do fim.

É quando entra em cena um reforço inesperado e decisivo para o Rubro-Negro, anunciado na edição de 2 de setembro do jornal O Imparcial: o centroavante Nonô, velho artilheiro e ídolo rubro-negro que no início do ano havia decidido parar com o futebol, estava de novo treinando com seus companheiros e seria escalado para a partida contra o Vasco. Não estava de todo fora de forma porque havia cumprido sua promessa apenas pela metade: continuava batendo sua bolinha no torneio da liga bancária e comercial, disputado por funcionários desses setores.

O jogo contra os cruzmaltinos também seria histórico por outro motivo: era o primeiro confronto oficial de competição entre os dois rivais a ser disputado no novíssimo estádio de São Januário. Belo pretexto para uma grande exibição dos rubro-negros. E ela veio, materializada na vitória por 2 a 1, em que o time esbanjou garra, superou suas limitações e controlou inteiramente o adversário, como conta O Imparcial: “No team vencedor houve bravura individual de todos os jogadores, sem excepção, de modo que a actuação de conjuncto resultou enthusiasta, impectuosa, digna da velha, tradicional coragem flamenga”.

Nonô, se não teve atuação tecnicamente brilhante, foi um líder empurrando o ataque rubro-negro. Acabou premiado com o primeiro gol da partida, numa bomba de longe, rasteira, vencendo o goleiro Amaral. O Vasco até ameaçou reagir, quando Bolão recebeu de Russinho e bateu para empatar. Mas ainda antes do intervalo o Flamengo estaria novamente na frente: Vadinho, que havia marcado os três gols do confronto do primeiro turno, percebeu uma brecha na defesa cruzmaltina e chutou forte, voltando a estufar as redes do rival no jogo.

Na etapa final, com o médio Benevenuto excepcional na destruição dos ataques cruzmaltinos, o Vasco não conseguia entrar na defesa rubro-negra (o goleiro Amado foi pouco acionado durante a partida). Os donos da casa tiveram então de recorrer às bolas alçadas para a área pelo médio Nesi, para que, na confusão, alguém empurrasse para o gol. Mas o Flamengo não teve grande dificuldade em conter a pressão estéril do time adversário e conquistar uma vitória maiúscula no imponente estádio do clube da comunidade lusitana e que – melhor ainda – afastava de vez o rival da briga pelo título carioca.

Na última rodada, disputada em 18 de setembro, três times ainda sonhavam com a conquista do campeonato: Flamengo e America, que se enfrentariam na Rua Paissandu, mais o Fluminense, que corria por fora e enfrentava o Vasco ali do lado, nas Laranjeiras, mas de olhos e ouvidos no que acontecia no vizinho estádio rubro-negro.

O Fla só dependia de si para levantar a taça. O America seria campeão direto se vencesse os rubro-negros e o Flu não conseguisse derrotar o Vasco. Já os tricolores não tinham chance de conquista imediata: precisando, antes de tudo, bater os cruzmaltinos, teriam ainda que torcer para o Flamengo não vencer. Dessa forma, em caso de empate na Rua Paissandu, Fla e Flu terminariam igualados na ponta. Já em caso de triunfo americano, os tricolores se igualariam a estes. Nos dois casos, seria disputada uma partida extra.

Logo no início do jogo, o Fla poderia ter saído em vantagem quando Nonô disputou uma bola com Pennaforte e chutou vencendo Joel num gol legal, aparentemente, mas que acabou anulado pelo árbitro Otto Bandusch, do Andarahy. Não teve importância. Poucos minutos depois, o gigantesco Nonô saltaria mais que a defesa rubra para completar de cabeça um centro da esquerda, abrindo o placar como fizera em São Januário duas semanas antes.

O autor do cruzamento seria mais um jogador que retornava ao time naquela reta final de campeonato. Era Moderato, ainda convalescendo da cirurgia de apendicite, com uma cinta sob o uniforme para segurar os pontos da cicatrização, em mais uma marca da raça daquela equipe. Sua atuação seria ainda coroada pela participação no segundo gol rubro-negro, marcado na etapa final: de seu pé esquerdo partiria um tiro cruzado, mistura de chute e centro, venenoso. Caprichosamente, a bola bateria em Pennaforte – o zagueiro que no início do ano trocara o Flamengo pelo America de maneira controversa – indo morrer lentamente nas redes de Joel. A torcida rubro-negra, que não perdoara a deserção do “menino de ouro”, sentiu-se vingada. Seria o gol do título.

No fim, ainda houve drama: Nonô se lesionou e teve que deixar a partida, substituído por Frederico. Era o esforço cobrando seu preço. O America se aproveitou e rapidamente descontou com Celso, passando a pressionar em busca do empate. Mas a defesa rubro-negra, o grande destaque da equipe naquele campeonato, voltaria a se destacar. Amado era intransponível. Hélcio e Hermínio, majestosos pelo alto ou por baixo. Benevenuto, um verdadeiro cão de guarda na linha média. Era o momento em que a raça transbordava ainda mais.

Ao apito final, os vencedores não se contiveram. De desacreditados, eram agora campeões. O Flamengo dera uma lição ao futebol carioca com sua “bravura moral, tenacidade, alegria de querer e de lutar” que eram “patrimônio e tradição” do clube, como citou O Imparcial. Com tudo contra, bastou erguer a camisa rubro-negra como uma bandeira de batalha. Puída, esfarrapada que fosse, foi ela quem prevaleceu no fim da história fabulosa e épica.



O time do Campeonato Carioca de 1927, desfalcado na foto pelo craque Moderato. Da esquerda para a direita: Amado, Hélcio, Nonô, Chrystolino, Frederico, Hermínio, Rubens, Fragoso, Agenor, Seabra, Vadinho e Benevenuto.




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